Economia circular no tratamento de esgoto: oportunidades e desafios no Brasil
O termo “economia circular” se refere a um modelo econômico que visa a recuperação, o reaproveitamento, a reciclagem e o reuso de produtos e materiais num determinado processo ou mesmo numa economia num geral. Com isso, os rejeitos eventualmente gerados são minimizados e muitas vezes podem ser reaproveitados. No quesito ambiental, há também uma redução nos impactos provocados, como por exemplo nas emissões de gases de efeito estufa.1 E é importante mencionar que esse conceito se opõe ao modelo de economia linear usualmente praticado hoje em dia na maioria dos países, no qual não é praticado o ciclo de recuperação de recursos e, com isso, a geração de resíduos é muito maior.
No Brasil, debates acerca da implementação de práticas de economia circular têm sido promovidos cada vez mais em diversos estados e muitas ações nesse sentido já têm sido tomadas, principalmente no setor de resíduos sólidos. Contudo, ainda há um longo caminho pela frente, tendo em vista que a adaptação dessas medidas a diferentes realidades é um desafio importante em um país tão diverso como o Brasil.
Considerando ainda que, no setor do saneamento, existem as preocupações com as metas da universalização dos serviços de água e esgoto – que são de fato prioridade para a população – o desafio acaba sendo não somente a viabilização de práticas sustentáveis, mas também a disponibilização desses serviços para todos. Hoje, algumas das tecnologias que permitem a recuperação e reutilização de recursos em tratamento de esgoto já são mais acessíveis em termos de custos de implementação. Contudo, ainda é fundamental que seja visada a escalabilidade das ideias, tendo por intuito a ampliação das práticas de circularidade em mais processos e a incorporação desse conceito de forma sistêmica no setor do saneamento.
Focando nas práticas já usualmente encontradas no cotidiano de algumas operações, é possível citar o reaproveitamento do lodo gerado em ETAs e ETEs, o reuso de água a partir do tratamento de efluentes e a recuperação de biogás para geração de energia. Apesar de ser possível encontrar esses processos sendo realizados em algumas estações pelo país, não é algo majoritário, o que novamente reforça a questão de se incentivar a aplicação dessas técnicas em cada vez mais operações.
Cada uma dessas frentes pode ser classificada de acordo com o produto final desejado, sendo eles principalmente água, energia e materiais. 2
ÁGUA
No Brasil, o reuso de água a partir do tratamento de efluentes tem como principal objetivo hoje o uso industrial e demais fins não-potáveis (como para irrigação na agricultura e uso urbano). Em alguns países, já é visado também o reuso potável, principalmente naqueles em que a escassez hídrica já chegou em um ponto mais crítico. Mesmo que em algumas regiões brasileiras a falta de água também já seja um problema real, um ponto importante na nossa realidade é o grande desperdício de água tratada. O percentual de perdas de água no sistema de abastecimento do país é de quase 40% 3, o que é um número bastante expressivo. Contudo, ao mesmo tempo em que medidas de mitigação dessas perdas devem ser avaliadas, também é importante que sejam realizados investimentos em tecnologias de reuso para que cada vez mais a água seja aproveitada e a cultura do reuso seja estabelecida, mesmo que inicialmente para fins não-potáveis. A definição das rotas tecnológicas a serem aplicadas para obtenção dessa água depende principalmente da sua finalidade, como por exemplo para lavagem de equipamentos, resfriamento de processos, irrigação na agricultura, dentre outros. Para além disso, também é importante considerar a viabilidade dessa aplicação – tanto econômica quanto técnica. Hoje, já existem tratamentos bastante avançados que possibilitam inclusive a obtenção de uma água de reuso com qualidade superior à água potável obtida pelo tratamento convencional. Contudo, o custo atrelado à implementação e manutenção de um processo como este é bastante elevado, o que pode não ser viável em muitos casos atualmente visados. Uma análise mais detalhada de cada situação deve ser realizada por profissionais capacitados para que cada projeto tenha em consideração as suas particularidades.
ENERGIA
Com relação ao reaproveitamento de energia, o mais comumente aplicado é a recuperação de biogás para geração de energia elétrica ou térmica. O biogás é recuperado de processos anaeróbios que porventura façam parte de uma estação de tratamento de esgoto e então é encaminhado a sistemas de geração de energia, visando a utilização na própria estação. Isso se demonstra uma prática potencial na busca pela universalização do saneamento, já que propicia um menor custo econômico de manutenção de uma ETE, tornando-a mais viável financeiramente. E pelo fato de o biogás ser composto por gases de efeito estufa, o seu aproveitamento na geração de energia propicia ainda uma redução na pegada de carbono do processo, o que vai de encontro com os objetivos sustentáveis da economia circular. E essa é somente uma das possibilidades relacionadas à energia. Outras técnicas que podem ser aplicadas são a pirólise térmica do lodo, na qual o material é convertido em carvão, bio-óleo, vapor d’água e gases combustíveis; a gaseificação, que é parecida com a pirólise, mas que utiliza temperaturas mais elevadas e tem uma maior proporção de formação de gases combustíveis; e a combustão de biomassa, que é um processo já bastante consolidado na prática, mas que requer atenção quanto aos gases liberados que são nocivos à saúde e meio ambiente 4.
MATERIAIS
A formação de materiais a partir de práticas de circularidade no saneamento também é outra oportunidade em tratamento de efluentes. Mais especificamente, essa produção normalmente está relacionada à etapa de tratamento do lodo. As principais práticas hoje são voltadas para a recuperação e geração de materiais para aplicação na agricultura, como biossólidos para fertilização. Contudo, há também casos em que o objetivo é a recuperação de determinados minerais ou metais presentes na fase líquida para uso industrial, assim como nutrientes (fósforo e nitrogênio) para fertirrigação 2.
Com isso, é possível observar que atualmente já existem diversas alternativas de práticas de circularidade que podem ser aplicadas no dia a dia de operação de ETEs. O estabelecimento de um ambiente político, econômico e tecnológico favorável ao desenvolvimento e à implementação dessas práticas é que tem sido um gargalo relevante nesse cenário. Como dito, propiciar a escalabilidade dessas ideias é fundamental para que cada vez mais processos possam agregar os conceitos e práticas da economia circular no cotidiano das operações.
Oportunidades com o uso da modelagem numérica
Em etapas de projeto e retrofit de ETEs em que se busca aplicar tecnologias e práticas de circularidade, um dos meios de se avaliar a viabilidade de diferentes configurações de um processo e cenários de operação é através de simulação computacional a partir de modelagem numérica. Através dela, é possível simular cada arranjo e rota tecnológica de interesse e obter a eficiência do tratamento, os custos atrelados ao processo e as emissões de gases de efeito estufa provenientes de cada etapa.
Ferramentas de modelagem têm se mostrado grandes aliadas a estudos nesta área por possibilitarem a análise de diferentes cenários de operação com grande agilidade. Quando comparamos com a metodologia tradicional de “tentativa e erro” de manobras operacionais, a modelagem tem grande vantagem com relação à velocidade de obtenção de resultados. Tendo em mãos um modelo calibrado da sua ETE, é possível realizar diversas simulações e avaliar os resultados obtidos em cada uma delas, sendo então uma excelente ferramenta de apoio à tomada de decisão.
Software WEST
O software WEST, desenvolvido pela DHI, é uma das ferramentas disponíveis no mercado que apresentam essa capacidade de análise a partir da simulação de um processo. Com ele, o usuário é então capaz de identificar possíveis gargalos nas operações, visando priorizar a inclusão de atividades, processos e/ou equipamentos que possam contribuir para a economia circular no setor do saneamento.
Para mais informações sobre o WEST, você pode entrar em contato conosco e acompanhar a página da HydroInfo (representante oficial da DHI no Brasil) pelo Linkedin através deste link.
Referências:
[1] United Nations. New Economics for Sustainable Development: Circular Economy. Disponível em: https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/circular_economy_14_march.pdf
[2] SMOL, M. Circular Economy in Wastewater Treatment Plant—Water, Energy and Raw Materials Recovery. Energies, v. 16, n. 9, p. 3911, 5 maio 2023. https://doi.org/10.3390/en16093911
[3] Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Diagnóstico Temático: Serviços de Água e Esgoto – 2023. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento.
[4] LIU, Z. et al. The state of technologies and research for energy recovery from municipal wastewater sludge and biosolids. Current Opinion in Environmental Science & Health, v. 14, p. 31–36, abr. 2020.
Escrito por: Juliana Neves - Eng. Química e Consultora na HydroInfo.